quarta-feira, 09 outubro 2024

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Intervenção do deputado Livio Lopes sobre a criação do Município de Santa Catarina do Fogo

Livio LopesIntervenção do Deputado Livio Lopes sobre a criação do Município de Santa Catarina do Fogo em 2005

A simpática freguesia de Santa Catarina no Fogo, de origem eclesiástica e eminentemente rural, mereceu, ao longo dos tempos, uma atenção particular pela sua espontaneidade, identidade própria, tradição e importância socio-económica, às quais se associam atitudes e posturas específicas dos seus habitantes, personificando os traços mais distintos do foguense, altivo e orgulhoso ao ponto de, à semelhança do boavistense (como disse António G. Lima), não revelar as suas carências, mas sobretudo o espírito crítico de reivindicar os seus direitos, maxime o seu auto-governo.

Dotada de uma identidade própria, forjada ao longo do seu percurso histórico, por um processo de povoamento e ocupação de terrenos, sui generis, resultante, de entre outras causas, das sucessivas erupções vulcânicas que ocasionalmente concentrava a população em Cova Figueira e infundia a prática de actividades sazonais e pastoril, Santa Catarina criou hábitos, costumes e tradições próprias, cujas vivências se manifestam e se distinguem, quer internamente, quer na diáspora.

Dela emerge Cova Figueira, o aglomerado-centro de maior expressão populacional e socio-económica, fundada a 6 de Dezembro de 1806 por Provisão do Conselho Ultramarino que deu de aforamento, três léguas dessa fazenda real, ao feitor, João Gomes Araújo, com o propósito de ali fundar um povoado, à sua custa, erigir uma igreja e povoá-la com 150 famílias pobres da freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, que viviam mal, particularmente depois da erupção vulcânica de 1799. É o único povoado da ilha de que se conhece, inequivocamente, a origem e foi elevada à categoria de Vila pelo Dec. Lei nr. 101/97 de 22 de Dezembro.

A fundação de Cova Figueira, situada num extenso ermo do sudeste da Ilha do Fogo, veio, por seu lado, fazer aparecer e desenvolver focos populacionais que evoluíram nos pontos de maior altitude, propícias à criação de gados e dotados de melhores condições agrícolas, criando-se, assim, uma vizinhança mais próxima de Chã das Caldeiras, com relações sociais e económicas concatenadas entre si por motivos de natureza sobretudo agro-pecuário ou, simplesmente, por temores da erupção vulcânica.

Viriato Gomes da Fonseca, Chefe de Brigada de agrimensura, no seu relatório sobre o Montado Nacional da Ilha do Fogo, do início do Séc. XX, reconhece o movimento migratório das zonas baixas para as zonas altas, mais húmidas, onde havia pasto, verdura, batata, mandioca, abóbora, mas sobretudo impulsionado pelo cultivo do rícino. O rícino veio a constituir, após a escravatura, juntamente com o café, o algodão e a purgueira, um dos principais produtos de exportação da ilha. Segundo Viriato da Fonseca “dá-se nessa região um produto que não existe na zona baixa, mamona ou palma-cristi, abundantemente procurado agora nos mercados da Europa. As sementes descascadas vendiam-se outrora a 16 centavos (quarta) e agora subiu para 30 centavos”. É um poderoso recurso de que lançam mão os possuidores de terrenos altos e cujo negócio toma grande incremento.

Assim se alimentou a espontaneidade da emergência de Santa Catarina como um conjunto populacional específico, retratada pela dispersão dos seus aglomerados, como é característico da ocupação territorial de toda a Ilha do Fogo facilitada por uma relativa mobilidade interna, unindo o espaço urbano ao rural, conformando, assim, o processo de integração social. Assim, apesar das dificuldades naturais e a deficiência dos meios de comunicação, a circulação foi sempre intensa através da ilha. A estrada principal pôs em comunicação São Filipe aos Mosteiros (52 Kms) desde os finais do século XIX, altura em que foi calcetada, facilitando assim o escoamento do café e outros produtos agrícolas. Na altura outra pista de terra batida ao norte de S. Filipe, permitia alcançar Ponta Verde (13 Kms). Eram, ao todo, 65 kms abertos ao trânsito de veículos.

Por outro lado “... Nenhum obstáculo detém cavaleiros hábeis e andarilhos infatigáveis. Num dia vai-se de S. Filipe ao lugar mais distante da Ilha levar uma carta ou uma encomenda, buscar um presente, oferecer um mimo, visitar um parente ou um amigo. O crioulo de Cabo Verde herdou do negro a sua espantosa mobilidade. ... Isto dá à vida de relação da ilha uma fisionomia particular. Todos se conhecem e a pobre casa está sempre aberta ao hóspede bem-vindo. Se um navio fundeou de manhã em S. Filipe sabe-se em Chã nessa tarde. Uma vistosa gravata americana desembarcada na vila vende-se, no outro dia a um proprietário de Mosteiros que quer fazer figura. As novidades correm de boca em boca, toda a ilha.” Como se pode-se ler em “A Ilha do Fogo e as suas erupções” de Orlando Ribeiro.

Santa Catarina é hoje um espaço unificado pelas aspirações dos seus habitantes, pelos seus constrangimentos naturais, mas também pelas suas potencialidades.

Por isso aspiram a elevação a Município num momento em que experimentam a industrialização do vinho, rentabilizam o turismo, o Parque Natural e os seus endemismos, multiplicam as iniciativas e investimentos dos seus emigrantes, de entre outras. Ela tem, actualmente, uma população de 4.796 habitantes (Censo de 2000) e 2.862 eleitores (eleições autárquicas de 2004), ocupa uma área territorial de 125,9 Km2 correspondente à actual freguesia de Santa Catarina, alberga uma delegação municipal, posto policial, correios, liceu e escolas de ensino básico e secundário, posto sanitário, mercado e matadouro municipal, estabelecimentos comerciais e industriais, rede telefónica, energia eléctrica, abastecimento de água, entre outros.

São dados elucidativos, ganhos e potencialidades que não compadecem com uma administração e centros de decisão distantes e morosos.

Pela Lei nr. 23/IV/91 de 30 de Dezembro, a Ilha do Fogo passou a ter dois Municípios, o de S. Filipe, de que fazem parte as freguesias de São Lourenço, Santa Catarina e Nossa Senhora da Conceição e o dos Mosteiros, com uma única freguesia, a da Nossa Senhora da Ajuda.

O Município de S. Filipe cobre uma extensão territorial correspondente a 394,4 Km2 e uma população de 27.826 indivíduos e enfrenta problemas específicos e de maior complexidade cujas soluções reclamam, por vezes, decisões políticas mais profundas.

A actual estruturação organizativa do Município de S. Filipe, baseada na existência de uma mera delegação administrativa municipal em Cova Figueira para cobrir a freguesia de Santa Catarina, sem atribuições e competências próprias e sem autonomia administrativa e financeira, não permite e nem favorece a necessária dinâmica de desenvolvimento económico e social da comunidade residente, nem a participação da população na conformação do seu destino.

Esta realidade, de crescentes exigências de respostas céleres e adequadas aos problemas, como também de construção de processos decisórios locais autónomos e eficazes, reforçada por potencialidades que vão, aos poucos transformando em recursos e equipamentos colectivos decisivos para a auto sustentabilidade da nova autarquia local, reclama, por isso, uma decisão política de fundo. A elevação de Santa Catarina do Fogo a Município é uma justa reivindicação e legítima aspiração da população local, clara e inequivocamente manifestada pela mesma e, reiteradamente, expressa através dos órgãos municipais representativos, cujos posicionamentos e pareceres foram oportuno e devidamente divulgados e são do conhecimento das entidades competentes.

Estrategicamente localizada a meio do principal anel rodoviário que liga o Município de S. Filipe ao Município dos Mosteiros, o Município de Santa Catarina do Fogo, com sede na Vila de Cova Figueira passará a constituir um novo pólo de desenvolvimento local, reintegrando a zona sudeste na dinâmica de desenvolvimento da Ilha do Fogo, actualmente enfraquecida com a abertura do eixo rodoviário norte que dá acesso aos Mosteiros, via Volta-a-Volta.

A região Fogo e Brava passará a ganhar um maior equilíbrio intermunicipal e, certamente, um melhor engajamento e vontade política na efectivação de medidas intersectoriais importantes para o desenvolvimento de sectores tais como o turismo, a energia e a água, o saneamento, os transportes, de entre outros.

Num momento em que o Parlamento não conseguiu o consenso para aprovar a lei-quadro sobre a criação, modificação e extinção das autarquias locais, o Governo anuncia a criação dos Municípios da Cidade Velha, São Lourenço dos Órgãos e Picos na Ilha de Santiago, Santa Catarina do Fogo e Tarrafal de São Nicolau, saudamos, apoiando, esta iniciativa e subscrevemos o projecto de lei para a criação do Município de Santa Catarina do Fogo nos termos que serão brevemente de conhecimento público, convictos de que, assim, cumprimos a nossa obrigação para com a população do Fogo e de Santa Catarina, em particular.

Que, com esta opção, o conhecido e simpático trovador Denda de Linda e as suas companheiras, Maria e Matília (actuais responsáveis pelo saneamento de Cova Figueira) e a elite local assumam esta nova realidade e me façam o favor de serem felizes.

Assembleia Nacional, Maio de 2005

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